Numa dessas garimpagens pela internet encontrei esse texto: uma entrevista com Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Mauro Diniz. Tomei a liberdade de postá-lo aqui... Conversa boa, especialmente quando quem fala é Zeca Pagodinho. Dá uma olhada:
Texto de Hugo Sukman
Jorge Aragão chega, elegante, numa calça Diesel italiana à mansão de Zeca Pagodinho, na Barra. Mauro Diniz, que já está lá, pensa na clave de fá da parte dos violoncelos de sua próxima orquestração. O samba hoje é assim, sofisticado, faz sucesso sem perder a essência quizumbeira. Há 20 anos, Diniz fazia os arranjos de “Raça brasileira”, LP que lançava, entre outros, Zeca e Jovelina Pérola Negra, consagrando o movimento do pagode, do qual Aragão já era o grande nome. Hoje, com artistas novos e antigos, lança: “Raça brasileira 20 anos Depois” (Som Livre). À beira da piscina de Zeca, papo regado a honesto tinto chileno, eles analisam o período.
H.S: Quando vocês perceberam que o samba havia mudado?
JORGE ARAGÃO: Num show no Clube Helênico. Quando cheguei tinha gente querendo derrubar os portões. Com o samba, eu nunca tinha visto isso. Nunca pude imaginar que alguém novo no samba pudesse provocar isso. Quando vi Zeca, Jovelina fazendo isso, fiquei maluquinho...
MAURO DINIZ: O grande lance foram os pagodes que começaram a surgir antes disso. Foi o que começou a acender esse lance todo. O Cacique de Ramos, o da Beira do Rio, o do Arlindo, o da Tia Doca.
H.S: Por que o nome pagode para aquela música nova que vocês faziam?
DINIZ: Papai ( Monarco ) tem um samba com Paulo da Portela, uma parceria póstuma em que a parte do Paulo feita em 1932, diz: “Quitandeiro, leva cheiro e tomate/Na casa do Chocolate que hoje vai ter macarrão/Prepara a barriga macacada/Que a bóia tá enfezada e o pagode fica bom”. Pagode era festa.
ZECA PAGODINHO: Em pagode na minha casa não se tocava só samba. Tocava até mais seresta.
DINIZ: Há um preconceito. Quando as pessoas querem falar do samba de uma forma meio assim, chamam de pagode. Quando é pejorativo é o “pagodeiro”, não o “sambista”.
H.S:Resistência ao termo pagode...
ZECA: Não é resistência, é que nego deturpou e a gente não quer fazer parte disso. O seu Alberto Lonato (falecido compositor da Portela ) quando queria dizer “pra caramba”, falava “de pagode”. “Pô, aquela mulher é bonita de pagode!” ou “Tomei uma bebida forte pra pagode”. Hoje, pagodeiro eles usam quando você faz merda.
DINIZ: “O pagodeiro fulano de tal não pagou pensão” (risos) .
ARAGÃO: Se não é bom, é pagodeiro. O Negritude Jr., o Alexandre Pires, se você disser que são sambistas, não pega bem. Então, teve que se inventar um nome.
H.S: O samba de vocês, feito nos pagodes, foi um movimento?
ARAGÃO: Mesmo que inconsciente, foi. O pagode sempre foi feito, mas dessa época para cá cresceu muito.
DINIZ: O Fundo de Quintal gravou, mas compositores já consagrados como Martinho, João Nogueira. E a Beth Carvalho gravou o pessoal do Cacique. Mas aí veio o disco “Raça brasileira”, Zeca e Jovelina começaram a botar a cabeça para fora. Foi uma idéia do produtor Milton Manhães, de juntar o pessoal que ia aos pagodes. Não é por estar na presença dele, mas o Zeca estava numa fase muito fértil. Hoje são três anos para acabar um samba ( risos ).
ZECA: É que não tinha esse negócio de fazer show, viajar, dar entrevista. Era só fazer música. Eu comprava roupa com crediário que a namorada abria para mim. Foi aí que eu fiz o “SPC”, foi a minha vingança. Quando ela me aporrinhava, eu parava de pagar. Ah, é? Então toma... (risos ).
DINIZ: Jorge Aragão é indubitavelmente um poeta. Mas quando o Zeca pintou, foi muito forte. Chegou atropelando geral. Porque se não chegasse, já tinha o Aragão, o pessoal todo que veio antes.
ZECA: Aragão já era o cara. A gente começando e ele chegava com aquele carrão bonito.
H.S: Havia toda uma tradição. Como era ser jovem no meio do samba?
DINIZ: Naquele tempo era mais a geração do papai, do Nelson Cavaquinho, do Candeia. Por isso que foi arriscado fazer o disco “Raça brasileira”. Quem é do meio sabia que existia talento ali. Mas se não tem um Zeca nesse lance, a Jovelina que tinha um negócio diferente na garganta, a negona não era mole, talvez esse movimento não tivesse acontecido. Porque só se cantava coisa consistente naquela época, coisas de Mijinha, Tio Hélio. Eram os sambas cantados nos pagodes. Se não houvesse pessoas abalizadas a segurar esse lance, talvez a coisa tivesse escorregado.
H.S: Vocês propunham mudanças no samba...
ARAGÃO: Ninguém queria fazer nada diferente. A idéia era continuar a fazer as coisas que a gente ouvia, sambas de quadra, partido alto. Mas umas pequenas novidades, banjo, repique de anel, essas coisinhas assim misturadas começaram a dar outro tom ao negócio.
H.S: Vocês começaram um som mais pesado, orquestra, teclados...
DINIZ: A orquestra veio depois. Mas me lembro da primeira vez que se usou teclado no Fundo de Quintal, num samba meu com Ratinho e Sereno, o “Parabéns pra você”, que deu problema. Gente dizendo que não podia botar. É que a gente que é músico tem uma visão mais ampla. Mas ninguém estava acostumado.
H.S: Na composição, o samba ficou mais coloquial...
ARAGÃO: A forma de se falar começou a mudar um bocadinho. Aquela história do “gorjear da passarada”, a letra de samba como se fosse seresta, foi mudando aos poucos. O Zeca começou a falar de SPC, de casal sem-vergonha.
ZECA: O samba mudou sem perder a essência.
H.S: Zeca, quando você sacou que, de pagodeiro que cantava por aí, você virou profissional?
ZECA: Ainda continuo cantando por aí. Para te dizer legal, não senti isso ainda não. Continuo o mesmo rebelde. Eu vou porque tem que ir mesmo, porque tem um batalhão ali me esperando. Mas se eu pudesse dar um bico nisso tudo e continuar como eu era... Minha mulher diz que para eu cantar hora e meia num show faço um esforço danado. Mas que se eu entro no Buraco Quente, na Mangueira, canto até às cinco.
ARAGÃO: Sou testemunha. Vi o Zeca, já fazendo sucesso, gritando com o Milton Manhães. “Olha o que você fez comigo. Eu ficava na rua, podia fazer o que eu quisesse. Agora todo mundo tomando conta de mim...”.
ZECA: Camarada, eu abria a porta do meu quarto e tinha monte de repórter na minha sala. E dali para o Chacrinha. Não é à toa que eu faltei uns quatro Chacrinhas, o que era um pecado. A produção vinha me buscar e eu ficava em cima do telhado só olhando o que acontecia. A avó da minha mulher dizia: “Mas ele não está. Eu vou fechar a porta, com licença?. E os caras xingavam: “Não vou com os cornos dessa velha...”. E eu falava para a Neném: “Os caras te xingaram pra caramba”. “Pois é, é isso que tu me arruma...” (risos) . Aí levei uma chamada do Bira Presidente ( do Fundo de Quintal ), que pediu para eu não fazer mais isso, que prejudicava o pessoal todo. Teve uma vez que pulei o muro e fui embora da TV Manchete. Eles tiravam muita onda com samba em televisão. O samba sempre teve esse negócio, parecia que estavam fazendo um favor. Você perguntava a que horas ia começar e o cara respondia: “Ah, não sei não, agüenta aí”, como quem diz: “Não tem que estar reclamando de porra nenhuma...”. Mudou porque nós botamos pé firme.
H.S: Ainda há esse espírito saudavelmente amador no samba?
DINIZ: Antigamente a gente não parava em casa. Encontrava o Zeca em Oswaldo Cruz, a gente saía de um pagode para o outro. Isso mudou. Eu ainda freqüento, mas o Zeca, o Jorge, é muita gente alugando.
ZECA: Ficou ruim para a gente fazer a coisa espontânea, de ir ao Cacique de Ramos. Fazer o samba no botequim e ir lá dentro conferir se estava bom. E já chegar na mesa cantando, e todo mundo aprendia. Agora o cara chega com tantan imenso, batendo forte, não dá. E banjo, eu não gosto de banjo, só do Almir Guineto e do Arlindo Cruz, que tocam diferente. O banjo é muito estridente, gosto do som de madeira do cavaco.
H.S: Os pagodes substituíram as escolas de samba?
DINIZ: Nessa época, as escolas já estavam carentes de seus compositores, já não eram mais os lugares onde se fazia o samba de terreiro. Não só o Cacique, mas todos os pagodes daquela época substituíam as escolas.
ZECA: Os pagodes do Arlindo e da Doca, Cascadura e Madureira. Era um vai-e-vem. Ia na Doca duas ou três vezes, e voltava para o Arlindo... A Abolição também foi um grande cenário, com o Sambola...
H.S: A música veio dos pagodes?
DINIZ: Veio da competência.
ARAGÃO: Hoje isso aí é preguiçoso. Mas na hora que o Zeca mete a caneta é outra coisa. Aquela rima por dentro, eu adoro. Não só rimar amor com dor, não. Na hora de rimar com dor, ele joga a rima por dentro para no fim do verso sair com outra rima. É bom, um jogo de palavras cruzadas.
ZECA: Teve um Beto Sem Braço, as tiradas dele, os temas que ele escolhia, coisas que ele pensava e ninguém pensava. Ele era partideiro, versava bonito. E tinha o Geraldo Babão, do Salgueiro. Só figura... Tudo sem compromisso de sucesso, sem saber se ia gravar ou não.
ARAGÃO: É isso que determinou a longevidade.
DINIZ: Estudei música com afinco. Aragão, Guineto, Arlindo Cruz, o pessoal não era mole. Mas ouvia quem? Cartola, Nelson Cavaquinho, os mestres. A Beth também gravava muito o pessoal da antiga. Agora, o que está chegando deixa um pouco a desejar.
ZECA: Sabe por quê? Porque nego já quer chegar, estourar, comprar carro bonito... Hoje a gente tem alguma coisinha, mas olha quanto tempo, 20 anos. Hoje o cara grava um disco, já está com dez seguranças. Na minha opinião, gosta-se pouco de samba. O sucesso é mais desejado do que fazer um samba bonito. A gente gostava de fazer um samba bonito e depois cantar no botequim, pronto.
H.S: Vocês atraíram de novo o jovem para o samba...
ZECA: Cantei com Dona Ivone Lara outro dia em São Paulo. O meu filho estava lá na platéia, com a filha do Nando Reis e um pessoal da MTV. Quando acabou ele me disse: “Pai, aquelas meninas estavam cantando tudo que Dona Ivone cantava. Uma delas disse até que se arrepiava com a presença de Dona Ivone”.
No Carnaval 2009 o Império Serrano vai reeditar o samba:"A lenda das sereias, rainhas do mar". Vc acha que reedição de samba enredo empobrece o Carnaval?
5 de agosto de 2008
Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Mauro Diniz soltam o verbo!
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